Entre algoritmos e silêncio: o lugar da psicanálise na era da inteligência artificial
- Francis Sunaga
- 17 de ago.
- 3 min de leitura
Vivemos uma era marcada por uma transformação profunda na forma como pensamos, lembramos e até como sentimos e desejamos. Nossos pensamentos se tornam acelerados e fragmentados, impulsionados por estímulos externos constantes. As emoções, muitas vezes, são reguladas por curtidas, visualizações e validações externas, por vezes artificiais e performáticas. Nesse cenário, a empatia tende a ser encurtada por interações rápidas e vínculos solúveis, enquanto a solidão paradoxalmente se amplia pela hiperconectividade.
Nesse contexto, surge uma pergunta instigante e ética: se já delegamos tantas funções às máquinas, será que também podemos delegar o cuidado emocional, a escuta do sofrimento humano?
O desejo — motor do sujeito — passa a ser moldado por inteligências algorítmicas que antecipam, sugerem e direcionam nossos interesses. O que outrora era enigmático, agora se torna previsível e colonizado por padrões de consumo, filtros digitais e bolhas de informação. Essa “colonização do desejo” já foi intuída em outras épocas: lembro aqui de um documentário de 2009 intitulado Da Servidão Moderna*, que denuncia justamente os mecanismos invisíveis pelos quais a vida subjetiva vai sendo capturada e direcionada por lógicas externas. Hoje, com os algoritmos e a inteligência artificial, esse processo alcança uma escala ainda mais íntima e sofisticada. (Link para o filme)
Trata-se, assim, de um novo regime de subjetivação: o humano sendo reconfigurado em seu núcleo mais íntimo, transformando-se em uma espécie de “ciborgue cultural”, entrelaçado com dispositivos tecnológicos e algoritmos.
Hoje, existem aplicativos capazes de oferecer acolhimento digital e até simular escuta, recursos que podem ter valor em situações pontuais de crise leve. No entanto, quando falamos de cuidado psíquico profundo, como aquele que acontece na psicanálise, a escuta não é apenas uma função técnica.
Em pouco tempo, talvez em um ou dois anos, as inteligências artificiais estarão abastecidas com vasto conhecimento epistemológico das diferentes escolas psicanalíticas. Isso pode torná-las mais rápidas e organizadas do que qualquer psicanalista humano na restituição de informações. Mas a mente não é apenas representação, e o trabalho analítico não se sustenta apenas no campo do saber. O psicanalista transita entre o epistemológico e o ontológico, sustentando a experiência do não saber, do silêncio e da abertura para o inesperado.
A dimensão mais original do psiquismo não surge pronta como saber ou conceito, mas se elabora no processo e só depois se traduz em representação. O processo psicanalítico é, nesse sentido, mais próximo da arte e da maiêutica: não se trata de dar respostas prontas, mas de provocar deslocamentos, possibilitar que o sujeito encontre sua própria palavra. A inteligência artificial, ao contrário, tende estruturalmente a preencher vazios com respostas.
Podemos imaginar que a IA venha a se tornar uma ferramenta útil em psicoeducação, triagem, ou até em processos terapêuticos de tipo mais cognitivo ou diretivo. Mas na psicanálise, cujo núcleo é a ética do desejo e a experiência do laço com o Outro, a IA encontrará um limite estrutural.
Delegar às máquinas o cuidado psíquico profundo seria confundir saber com escuta e resposta com ato analítico. A presença humana, com sua imperfeição, sua dúvida e sua implicação ética, é insubstituível no laço analítico. A psicanálise se ancora no silêncio que acolhe, no não saber que abre caminhos, e no encontro entre sujeitos. É nesse espaço, onde o enigma do desejo ainda pode emergir, que reside a diferença essencial entre algoritmos e análise.
Nota de rodapé:
Da Servidão Moderna (2009) é um documentário de Jean-François Brient e Victor León Fuentes que critica a sociedade de consumo contemporânea, mostrando como as pessoas se tornam "escravas voluntárias" dentro de um sistema mercantil totalitário. O filme utiliza imagens de filmes de ficção e documentários para ilustrar como o desejo de consumo é manipulado e como a liberdade é ilusória. Disponível gratuitamente em plataformas como Libreflix e YouTube.

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